Com efeito, se a finalidade da reunião de pessoas for a prática de crimes determinados ou crimes da mesma espécie, a figura será a do instituto do concurso eventual de pessoas e não da associação criminosa

Cezar Roberto Bitencourt

1. Considerações preliminares

A Lei nº 12.850/2013 redefiniu o crime de quadrilha ou bando, e, com precisão, finalmente, estabeleceu a distinção entre organização criminosa e associação criminosa, impedindo-se, de uma vez por todas, a condenável confusão, intencional ou não, que se fazia sobre os dois institutos na relação processual, redefinindo o antigo crime de quadrilha ou bando (art. 288 do CP) dessa forma: “Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”. Essa finalidade específica, que é um elemento subjetivo-normativo do tipo tem de ficar claramente demonstrado na denúncia.

Percebe-se que o núcleo do tipo desse crime continua sendo associar-se, que significa unir-se, juntar-se, reunir-se, agrupar-se para a finalidade específica de delinquir. É necessária a união de três pessoas (ou mais), agora com o fim específico de cometer crimes, para se caracterizar o crime de associação criminosa, ou seja, exigem-se, no mínimo, três pessoas reunidas com o propósito de cometer crimes indeterminados. Entende-se por associação criminosa, em outros termos, a reunião estável ou permanente (que não significa perpétua) para o fim de perpetrar uma série indeterminada de crimes.

Voltando à nova definição do crime de associação criminosa, deve-se reiterar que ela tem como objetivo específico a prática de crimes indeterminados. No entanto, se a associação objetivar a prática de um ou outro crime, determinados, ainda que sejam três ou mais pessoas participantes, e que objetive praticar mais de um crime, determinados, não se tipificará a associação criminosa, na medida em que sua elementar típica exige finalidade indeterminada de crimes, mas configurará somente o conhecido – e, por vezes, “esquecido” – concurso eventual de pessoas.

Nesse sentido, destacava, com a precisão de sempre, Antolisei, verbis: “Obiettivo dell’associazione deve essere la commissione di più delitti (non di contravvenzioni). In altri termini, si esige che l’associazione abbia come scopo l’attuazione di un programma di delinquenza, e cioè il compimento di una serie indeterminata di delitti. Associarsi per commettere un solo delitto non integra la fattispecie in esame” .

Com efeito, se a finalidade da reunião de pessoas for a prática de crimes determinados ou crimes da mesma espécie, a figura será a do instituto do concurso eventual de pessoas e não da associação criminosa, na mesma linha do entendimento da doutrina italiana.

2. A relevância das elementares normativas e subjetivas do crime de associação criminosa

É absolutamente indispensável narrar descritivamente em que consiste a associação criminosa, demonstrar e descrever analiticamente a existência das elementares normativas e subjetivas de dita associação, sob pena de pecar por falta de demonstração da existência de elementares constiturivas desse crime. Na verdade, a estrutura central do núcleo do crime de associação criminosa reside na consciência e vontade de os agentes organizarem-se em associação criminosa, com o fim específico de praticar crimes indeterminados, que é o seu imprescindível elemento subjetivo especial do injusto.

Associação criminosa é crime de perigo comum e abstrato, de concurso necessário e de caráter permanente, inconfundível, portanto, com o concurso eventual de pessoas, a conhecida coautoria. É indispensável que os componentes da associação criminosa concertem previamente a específica prática de crimes indeterminados, como objetivo e fim do grupo, mas esses aspectos além de narrados devem ser, concretamente, demonstrados que estão presentes em uma suposta ação delituosa.

Por outro lado, o indispensável concerto prévio entre os associados sobre a específica prática de crimes indeterminados, como objetivo e fim do grupo deve ser, necessariamente, objeto de descrição em uma eventual exordial acusatória, demonstrando o que, como, quando, onde ocorreu tal concerto, em que ele consiste, além de descrever os demais atos constitutivos da própria associação criminosa, e não apenas os fatos criminosos que, os supostos membros teriam praticados em nome ela.

Para a configuração do crime de associação criminosa, ademais, deve, necessariamente, haver um mínimo de organização hierárquica estável, harmônica e permanente, com distribuição de funções e obrigações organizativas e constitutivas. Pois essa organização, harmoniosa de distribuição de tarefas da associação deve ser objeto de cuidadosa descrição e comprovação de sua efetiva existência em cada caso concreto. Nesse sentido, invocamos novamente o magistério de Antolisei que pontificava, verbis: “‘Associazione’ non equivale ad ‘acordo’, come si può rivelare dal confronto dell’art. 304 com l’art. 305 (infra n. 240). Affinché esista associazione occorre qual che cosa di più: è necessaria l’esistenza di un minimum di organizzazione a carattere stabile, senza che, però, ocorra alcuna distribuzione gerarchica di funzioni” .

Estabilidade e permanência são, por sua vez, duas características específicas, próprias e identificadoras de uma associação criminosa. A demonstração de sua estabilidade e permanência é imprescindível para a aptidão e validade de uma denúncia por esse tipo de crime. Nessa mesma linha, destaca Regis Prado , com acerto, que não basta para o crime em apreço um simples ajuste de vontades. Embora seja indispensável, não é suficiente para caracterizá-lo. É necessária, além desse requisito, a característica da estabilidade. No mesmo sentido, pontificava Hungria que “a nota de estabilidade ou permanência da aliança é essencial. Não basta, como na ‘cooparticipação criminosa’, um ocasional e transitório concêrto (sic) de vontades para determinado crime: é preciso que o acôrdo (sic) verse sobre uma duradoura situação em comum...” .

Na realidade, queremos demonstrar que é injustificável a confusão que, outrora, se fez entre o concurso eventual de pessoas (art. 29) e associação criminosa (art. 288). Com efeito, não se pode confundir aquele – concurso de pessoas –, que é associação ocasional, eventual, temporária, para o cometimento de um ou mais crimes determinados, com a associação criminosa, que é uma associação para a prática de crimes indeterminados, configuradora do crime de associação criminosa, que deve ser duradoura, permanente e estável, cuja finalidade é o cometimento indeterminado de crimes.

Agora, mais do que nunca, é inadmissível esses abusos do poder de denunciar, pois, visando limitar essa prática abusiva, o legislador foi mais contundente na definição do elemento subjetivo especial do tipo. Exige expressamente, nos termos da Lei n. 12.850/2013, o fim específico da associação criminosa, verbis: “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes” (grifamos). Essa exigência do legislador não mais pode ser ignorada, como se vinha fazendo até então!

Enfim, a configuração típica do crime de associação criminosa compõe-se dos seguintes elementos: a) concurso necessário de, pelo menos, três pessoas; b) finalidade específica dos agentes de cometer crimes indeterminados; c) estabilidade e permanência da associação criminosa. Em outros termos, a associação criminosa exige, para sua configuração, união estável e permanente de criminosos voltada para a prática indeterminada de vários crimes, como já afirmamos alhures.

Para concluir, invocamos a decisão paradigmática do Ministro Sepúlveda Pertence, na sua síntese lapidar:

“Mas, data venia, isso nada tem a ver com o delito de quadrilha, que pode consumar-se e extinguir-se sem que se tenha cometido um só crime, e que pode constituir-se para a comissão de um número indeterminado de crimes de determinado tipo, ou dos crimes de qualquer natureza, que se façam necessários para determinada finalidade, como é o caso que pretende a denúncia neste caso. Pelo contrário, a associação que se organize para a comissão de crimes previamente identificados, mais insinua coautoria do que quadrilha” .

3. Associação criminosa e responsabilidade pelos crimes por ela praticados

O “associado” que não participou de algum crime praticado por ela, através de alguns de seus membros, também deve responder por ele? Em outros termos, aquele vínculo associativo que une os membros da associação é suficiente para torná-los igualmente responsáveis por todos os crimes que o bando eventualmente praticar, a despeito da consagração da responsabilidade penal subjetiva?

A resposta é, evidentemente, negativa. Com efeito, quando a associação criminosa pratica algum crime, somente o integrante que concorre, in concreto, para sua efetivação responde por ele e, nesse caso, em concurso material com o crime previsto no art. 288 do CP. Os demais membros, que não participaram da execução de determinado crime, responderão exclusivamente pelo crime de associação criminosa, que é somente de perigo, e não de dano. O próprio Hungria já adotava esse entendimento, verbis: “o simples fato de pertencer à quadrilha ou bando não importa, inexoràvelmente (sic), ou automaticamente, que qualquer dos associados responda por todo e qualquer crime integrado no programa da associação, ainda que inteiramente alheio à sua determinação ou execução”.

No mesmo sentido, professava Antolisei: “I compartecipi che commettono uno o più dei reati formano oggetto dell’associazione, ne rispondono individualmente in concorso col delitto di cui stiamo occupando. La responsabilità per i detti reati si estende esclusivamente a quei soci che ne sono compartecipi ai sensi degli artt. 110 e segg. del codice” .

Convém deixar claro que uma coisa é associar-se para delinquir, de forma mais ou menos geral – associação criminosa –, outra, completamente diferente, é reunir-se, posteriormente, para a prática de determinado crime – concurso eventual de pessoas -. Esta segunda ação – a prática de determinado crime – não depende, necessariamente, daquela primeira (associação criminosa). Essa é uma forma didática de demonstrar a quem tem dificuldade de perceber a diferença, o que ocorre, normalmente, somente com os não iniciados: na primeira hipótese, “associar-se” para delinquir, de forma indiscriminada, configura associação criminosa; “reunir-se”, posteriormente, para a prática de determinado crime ou crimes configura o similar instituto concurso eventual de pessoas (coautoria), que são coisas ontológica e juridicamente distintas.

Associação criminosa é crime em si mesmo, consistindo na simples associação estável e permanente para a prática de crimes não determinados ou individualizados. A prática, no entanto, de qualquer crime objeto da programação da “sociedade” não exige a participação de todos, podendo, inclusive, ser praticado por um só dos integrantes do bando. Pelo crime de associação criminosa respondem todos os integrantes da associação; agora, pelos crimes que esta (associação) praticar, responde somente quem deles tomar parte (concurso de pessoas): uma coisa é a associação criminosa, outra, são os crimes que ela efetivamente pratica; por aquela, com efeito, respondem todos os seus membros, por estes, respondem somente os agentes que efetivamente o perpetuaram.

Nesse sentido, já era a conclusão de Sebastian Soler, “no todo miembro de la asociación responde necesariamente por los delitos efectivamente consumados por algunos de los miembros” . Por isso mesmo que o concurso material entre o crime de associação criminosa e os crimes que ela pratica não representam um bis in idem. O crime praticado em concurso (material) não absorve nem exclui o de associação criminosa, pela simples razão de que não é necessária a precedência deste para a prática daquele; pela mesma razão, o simples fato de integrar uma determinada associação criminosa não implica a responsabilidade por todos os crimes que esta realizar: também aí a responsabilidade continua sendo subjetiva e individual – cada um responde pelos fatos que praticar, ou dos quais participar (direito penal do fato) .

Mas para clarear a imputação e, especialmente a participação dos denunciados, a denúncia deve, necessariamente, descrever quais as condutas, em que circunstâncias, quando, onde e como foram praticadas, e, principalmente, quem delas efetivamente participou e qual a conduta que realizou. Sem a narração constitutiva e descritiva desses aspectos a denúncia mostra-se inepta e impede que se apresente uma defesa adequada, como exige a previsão do art. 41 do Código de Processo Penal.

No entanto, o atendimento desses aspectos descritivos e imputativos a determinado denunciado, não haverá do que defender-se, pois não basta a denúncia narrar ou descrever fatos, senão imputá-los concretamente a cada denunciado. Não basta narrar fatos, se não houver efetiva imputação, e a ausência desta configura falta de justa causa para a instauração de ação penal contra o acusado. É, por conseguinte, absolutamente insuficiente tentar integrá-lo no crime de associação criminosa, com linguagem genérica, formal e impessoal, que serve para qualquer crime, em qualquer circunstância e para qualquer pessoa, como ocorre frequentemente em processos dessa natureza.

É ainda o mais grave é tentar imputar a alguém, sem substrato fático nos autos, a participação em crimes que a suposta associação criminosa teria praticado, sem descrever o que determinado denunciado teria realizado ou como teria participado da prática específica de tais crimes.

Enfim, esses são alguns dos aspectos relevantes do crime de associação criminosa, especialmente sob o seu aspecto processual e procedimental. Sob o plano de direito penal material mais haveria a dizer, mas não é esse o objetivo deste pequeno ensaio.

Cezar Roberto Bitencourt - Doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha. Professor fundador do Programa de Pós Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. Advogado Criminalista. Procurador de Justiça aposentado no Estado do Rio Grande do Sul.

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